sexta-feira, 4 de março de 2011

HOMENAGEM: Moacyr Scliar

Espírito natalino
“Homem disfarçado de Papai Noel
tenta matar publicitária em SP.”
(Caderno Cotidiano – FSP – 18/12/01)

Primeira coisa que ele fez, ao chegar em casa, foi tirar a roupa de Papai Noel: estava muito quente, suava em bicas. Também queixou-se de dor na coluna. Isso é por causa do saco que você carrega, observou a mulher. De fato pesava bastante, o tal saco. A razão ficou óbvia quando ele esvaziou o conteúdo sobre a mesa: revólveres, granadas, submetralhadoras, vários pentes de munição. Já não dá para sair de casa sem um arsenal resmungou. 0 seu mau humor era tão óbvio que ela tentou amenizá-lo, puxando conversa. Como foi o seu dia, perguntou.

— Um desastre foi a azeda resposta. — Mais uma vez errei a pontaria. Já é a segunda vez nesta semana.

— Isto é o cansaço — disse ela.

— Você precisa de um repouso. Amanhã você vai ficar em casa, não vai?

— De que jeito? Tenho trabalho

-Amanhã? No dia de Natal?

— O que é que você quer? É a minha última chance de usar a fantasia de Papai Noel Tenho de aproveitar.

Suspirou:

— Vida de pistoleiro de aluguel é assim mesmo, mulher. Natal, Ano Novo, essas coisas para nós não existem. Primeiro a obrigação. Depois a celebração.

Ela ficou pensando um instante. — Neste caso — disse —, vamos antecipar a nossa festinha de Natal Vou lhe dar o seu presente.

Abriu um armário e de lá tirou um caprichado embrulho. Surpreso, o homem o abriu com mãos trêmulas. E aí o seu rosto se iluminou:

-Um colete à prova de balas! Exatamente o que eu queria! Como é que você adivinhou?

— Ora — disse ela, modesta, afinal de contas eu conheço você há um bocado de tempo.

Ele examinava o colete, maravilhado. E aí notou que ele era todo enfeitado com minúsculos desenhos.

— O que é isto? perguntou intrigado.

Ela explicou: eram pequenas árvores de Natal e desenhos do Papai Noel, trabalho de uma habilidosa bordadeira nordestina:

— Para você lembrar de mim quando estiver trabalhando.

Ele começou a chorar baixinho. Em silêncio, ela o abraçou. Compreendia perfeitamente o que se passava com ele. Ninguém é imune ao espírito natalino.

Texto extraído do jornal “Folha de São Paulo”, São Paulo, edição de 24/12/2001, publicado com o título "Espírito natalino, 2001.
Moacyr Scliar, às segundas-feiras, escreve um texto de ficção baseado em notícias publicadas no jornal.

quarta-feira, 2 de março de 2011

Semana de Arte Moderna

Fonte:Encarta-BR
Arte moderna, Semana de
Oficialmente, o movimento modernista irrompe, no Brasil, com a Semana de Arte Moderna que, em de três festivais realizados no Teatro Municipal de São Paulo, apresenta as novas idéias artísticas. A nova poesia através da declamação. A nova música por meio de concertos. A nova arte plástica exibida em telas, esculturas e maquetes de arquitetura. O adjetivo "novo", marcando todas estas manifestações, propunha algo a ser recebido com curiosidade ou interesse.
Não foi assim. Na principal noite da semana, a segunda, enquanto Menotti Del Picchia expunha as linhas e objetivos do movimento e Mário de Andrade recitava sua Paulicéia desvairada, inclusive a Ode ao burguês, a vaia era tão grande que não se ouvia, do palco, o que Paulo Prado gritava da primeira fila da platéia. O mesmo aconteceu com Os sapos, de Manuel Bandeira, que criticava o parnasianismo. Sob um coro de relinchos e miados, gente latindo como cachorro ou cantando como galo, Sérgio Milliet nem conseguiu falar. Oswald de Andrade debochou do fato, afirmando que, naquela ocasião, revelaram-se "algumas vocações de terra-nova e galinha d'angola muito aproveitáveis".
A semana era o ápice, ruidoso e espetacular, de uma não menos ruidosa e provocativa tomada de posição de jovens intelectuais paulistas contra as práticas artísticas dominantes no país. Práticas que, embora aceitas e mantidas, mostravam-se esgotadas para expressar o tempo de mudanças em que viviam. A fala de Menotti del Picchia, afirmando que a estética do grupo era de reação e, como tal, guerreira, não deixava margem à dúvidas: "Queremos luz, ar, ventiladores, aeroplanos, reivindicações obreiras, idealismos, motores, chaminés de fábricas, sangue, velocidade, sonho em nossa arte. Que o rufo de um automóvel, nos trilhos de dois versos, espante da poesia o último deus homérico, que ficou anacronicamente a dormir e a sonhar, na era do jazz band e do cinema, com a flauta dos pastores da Arcádia e os seios divinos de Helena".
Antecedentes
Vários fatos contribuiram para a Semana de Arte Moderna de 1922. Em 1912, Oswald de Andrade chega da Europa influenciado pelo Manifesto futurista de Marinetti, funda o irreverente jornal O Pirralho e, em suas páginas, critica a pintura nacional. O pintor russo Lasar Segall, em 1913, desembarca em São Paulo com um estilo não acadêmico, inovador e de cunho expressionista. Annita Malfatti, em 1914, após mostrar seus trabalhos ligados aos impressionistas alemães, decide estudar nos Estados Unidos. Em 1917 - ano de grande agitação político-social, greves e tumultos marcando as lutas do operariado paulista -, inaugura-se a nova exposição de Anita Malfatti, impiedosamente criticada por Monteiro Lobato no artigo Paranóia ou mistificação. Menotti del Picchia publica Juca mulato, um canto de despedida à era agrária diante da urbanização nascente. Em 1920, Oswald de Andrade diz que, no ano do centenário da independência, os intelectuais deveriam fazer ver que "a independência não é somente política, é acima de tudo independência mental e moral".
A estes episódios, somavam-se as idéias vindas do exterior. Do início do século XX ao momento em que foi deflagrada a semana, 21 movimentos culturais haviam ocorrido no Ocidente:
— Fauvismo, 1905.
— Expressionismo, 1906.
— Cubismo, 1907.
— Futurismo, 1909.
— Raionismo, 1911.
— Orfismo, 1912.
— Cubo-futurismo, 1912.
— Suprematismo, 1912.
— Não-objetivismo, 1913.
— Vorticismo, 1913.
— Imaginismo, 1914.
— Dadaísmo, 1916.
— Neoplasticismo, 1917.
— Ultraísmo, 1918.
— Bauhaus, 1919.
— Espírito-Novo, 1920.
— Pintura metafísica, 1920
— Musicalismo, 1920.
— a Neue Schlichkeit, 1922.
— Manifesto dos pintores mexicanos (Siqueiros, Orozco, Rivera. 1922).
— Nova objetividade, 1922.
A semana coincide com a Nova objetividade e com o manifesto dos mexicanos, mas seu ideário estava mais ligado a 1909. Embora rejeitassem a denominação de "futuristas", esta doutrina se ajusta à paisagem paulistana do momento e lhes dá instrumentos de trabalho para as idéias renovadoras que visavam implantar.
O contexto político-social em que ocorre a semana é, também, de agitação e mudanças. As sucessivas crises da economia cafeeira, sustentáculo da vida republicana, haviam abalado o prestígio social da aristocracia rural paulista. Ao mesmo tempo, expande-se a industrialização com conseqüente urbanização e maior mobilidade social. A pequena burguesia, que subira à cena política no início da república (1889), começa a dar sinais de inquietação. A grande burguesia se divide, com um segmento investindo na indústria nascente e hostilizando o segmento agrário que ainda controla o poder público.
Composição do grupo modernista
É neste contexto conturbado que se compõe o grupo modernista. Entre outros, dele fazem parte os prosadores e poetas Oswald de Andrade, Mário de Andrade, Menotti Del Picchia, Guilherme de Almeida, Agenor Barbosa, Plínio Salgado, Cândido Motta Filho e Sérgio Milliet. Os pintores Anita Malfatti, Di Cavalcanti, Vicente do Rego Monteiro e John Graz. Os escultores Victor Brecheret e W. Haeberg. Os arquitetos Antonio Moya e George Przirembel. Em preparação à semana, um grupo vem ao Rio de janeiro para buscar a adesão de artistas que consideravam simpatizantes às idéias modernizadoras: Manuel Bandeira, Renato Almeida, Villa-Lobos, Ronald de Carvalho, Álvaro Moreyra e Sérgio Buarque de Hollanda.
Programa do modernismo
1921 marca o início da busca de abrir terreno às idéias novas:
— Rejeição das concepções estéticas e práticas artísticas românicas, parnasianas e realistas.
— Independência mental brasileira e recusa às tendências européias em moda nos meios cultos conservadores.
— Elaboração de novas formas de expressão, capazes de apreender e representar os problemas contemporâneos.
— Transposição, para a arte, de uma realidade viva: conflitos, choques, variedade e tumulto, expressões de um tempo e uma sociedade.
Estas idéias se desdobram com o crescer do movimento, gerando os mais diversos caminhos: a poesia pau-brasil, o verde-amarelismo, a antropofagia (ver Antropofagia cultural), o regionalismo, a reação espiritualista e a consciência social.
Mário de Andrade, em estudo que levanta alarido e protestos, analisa Os mestres do passado, criticando os ídolos do tempo: Francisca Júlia, Raimundo Correia, Alberto de Oliveira, Olavo Bilac e Vicente de carvalho. Oswald de Andrade, no artigo O meu poeta futurista, provoca reações transcrevendo versos de Mário, dentro da estética inovadora (ver Poesia moderna brasileira).
Os festivais da semana, reunindo o grupo rebelde, ecoam a divisão dos grupos artísticos ligados ao passado e introduzem as coordenadas culturais da nova era, o mundo da técnica e do progresso que o modernismo glorifica para, depois, criticar por suas conseqüências na esfera política e social.
Contradição fatal
"A aristocracia tradicional nos deu mão forte", confessa Mário de Andrade. "Dois palhaços da burguesia, um paranaense, outro internacional - Emílio de Menezes e Blaise Cendrars - me fizeram perder tempo", diz Oswald. "Fui com eles um palhaço de classe", apontam ambos, com lucidez intelectual, para a contradição que só do tempo faria evidente: esteticamente revolucionário, o movimento traria ou aprofundaria conquistas - o verso livre, por exemplo - que se tornariam definitivas. Uma nova visão e conceituação do fenômeno poético, da concepção da forma, da função das imagens e de todos os recursos técnicos de expressão artística. Assim obteriam, como afirma Mário de Andrade no mesmo balanço autocrítico, "direito à pesquisa estética livre de cânones limitadores; a atualização da inteligência artística brasileira e a estabilização de uma consciência criadora nacional.
Por volta de 1930, o movimento triunfante completa a ruptura com as tradições conservadoras e acadêmicas, abrindo o caminho a novas perspectivas e rumos, trilhadas pelas gerações seguintes. Na ferina expressão de Franklin de Oliveira, a Semana de Arte Moderna foi "uma revolução que não saiu dos salões". Sublinhando a autocrítica dos principais líderes do modernismo, Franklin afirma que os modernistas "não pegaram "a máscara do tempo, para esbofeteá-la, como ela merecia ". Esta posição levou o grupo a acreditar que nada havia feito de útil. As palavras de Mário de Andrade definem este sentimento: "Eu creio que os modernistas da Semana de Arte Moderna não devemos servir de exemplo a ninguém. Mas podemos servir de lição."
, evento de 1922 que representa uma renovação de linguagem, a busca de experimentação, a liberdade criadora e a ruptura com o passado.

Curriculo oficial (caderno I): “DESENVOLVENDO O OLHAR CRÍTICO (resenha)”



Futurismo

O primeiro manifesto foi publicado no Le Fígaro de Paris, em 22/02/1909, e nele, o poeta italiano Marinetti, dizendo que "o esplendor do mundo enriqueceu-se com uma nova beleza: a beleza da velocidade. Um automóvel de carreira é mais belo que a Vitória de Samotrácia". O segundo manifesto, de 1910, resultou do encontro do poeta com os pintores Carlo Carra, Russolo, Severini, Boccioni e Giacomo Balla.
Os futuristas saúdam a era moderna, aderindo entusiasticamente à máquina. Para Balla, "é mais belo um ferro elétrico que uma escultura". Para os futuristas, os objetos não se esgotam no contorno aparente e seus aspectos se interpenetram continuamente a um só tempo, ou vários tempos num só espaço. O grupo pretendia fortalecer a sociedade italiana através de uma pregação patriótica que incluía a aceitação e exaltação da tecnologia.

O futurismo é a concretização desta pesquisa no espaço bidimensional. Procura-se neste estilo expressar o movimento real, registrando a velocidade descrita pelas figuras em movimento no espaço. O artista futurista não está interessado em pintar um automóvel, mas captar a forma plástica a velocidade descrita por ele no espaço.

Principais artistas:

GIACOMO BALLA , em sua obra o pintor italiano tentou endeusar os novos avanços científicos e técnicos por meio de representações totalmente desnaturalizadas, embora sem chegar a uma total abstração.Mesmo assim, mostrou grande preocupação com o dinamismo das formas, com a situação da luz e a integração do espectro cromático. A formação acadêmica de Balla restringiu-se a um curso noturno de desenho, de dois
meses de duração, na Academia Albertina de Turim, sua cidade natal. Em 1895 o pintor mudou-se para Roma, onde apresentou regularmente suas primeiras obras em todas as exposições da Sociedade dos Amadores e Cultores das Belas-Artes. Cinco anos mais tarde, fez uma viagem a Paris, onde entrou em contato com a obra dos impressionistas e neo-impressionistas e participou de várias exposições. Na volta a Roma, conheceu Marinetti, Boccioni e Severini. Um ano mais tarde, juntava-se a eles para assinar o Manifesto Técnico da Pintura Futurista. Preocupado, como seus companheiros, em encontrar uma maneira de visualizar as teorias do movimento, apresentou em 1912 seu primeiro quadro futurista intitulado Cão na Coleira ou Cão
Atrelado. Dissolvido o movimento, Balla retornou às suas pinturas realistas e se voltou para a escultura e a cenografia. Embora em princípio Balla continuasse influenciado pelos divisionistas, não demorou a encontrar uma maneira de se ajustar à nova linguagem do movimento a que pertencia. Um recurso dos mais originais que ele usou para representar o dinamismo foi a simultaneidade, ou desintegração das formas, numa repetição quase infinita, que permitia ao observador captar de uma só vez todas as seqüências do movimento..

CARLO CARRA (1881-1966), junto com Giorgio De Chirico, ele se separaria finalmente do futurismo para se dedicar àquilo que eles próprios dariam o nome de Pintura Metafísica. Enquanto ganhava seu sustento como
pintor-decorador freqüentava as aulas de pintura na Academia Brera, em Milão. Em 1900 fez sua primeira viagem a Paris, contratado para a decoração da Exposição Mundial. De lá mudou-se para Londres. Ao voltar, retomou as aulas na Academia Brera e conheceu Boccioni e o poeta Marinetti. Um ano mais tarde assinou o
Primeiro Manifesto Futurista, redigido pelo poeta italiano e publicado no jornal Le Figaro. Nessa época iniciou seus primeiros estudos e esboços de Ritmo dos Objetos e Trens, por definição suas obras mais futuristas.
Numa segunda viagem a Paris entrou em contato com Apollinaire, Modigliani e Picasso. A partir desse momento começaram a aparecer as referências cubistas em suas obras. Carrà não deixou de comparecer às
exposições futuristas de Paris, Londres e Berlim, mas já em 1915 separou-se definitivamente do grupo.  Juntou-se a Giorgio De Chirico e realizou sua primeira pintura metafísica. Em suas últimas obras retornou ao cubismo.Publicou vários trabalhos, entre eles La Pittura Metafísica (1919) e La Mia Vita (1943), pintor italiano. Representante do futurismo e mais tarde da pintura metafísica, influenciou a arte de seu país nas décadas de 1920 e 1930.
 

UMBERTO BOCCIONI (1882-1916), sua obra se manteve sob a influência do cubismo, mas incorporando os conceitos de dinamismo e simultaneidade: formas e espaços que se movem ao mesmo tempo e em direções contrárias. Nascido em Reggio di Calábria, Boccioni mudou-se ainda muito jovem para Roma, onde estudou em diferentes academias. Logo fez amizade com os pintores Balla e Severini. No início, mostrou-se interessado
na pintura impressionista, principalmente na obra de Cézanne. Fez então algumas viagens a Paris, São  Petersburgo e Milão. Ao voltar, entrou em contato com Carrà e Marinetti e um ano depois se encontrava
entre os autores do Manifesto Futurista de Pintura, do qual foi um dos principais teóricos. Foi com a intenção de procurar as bases dessa nova estética que ele viajou a Paris, onde se encontrou com Picasso e Braque.
Ao retornar, publicou o Manifesto Técnico da Pintura Futurista, no qual foram registrados os princípios teóricos da arte futurista: condenação do passado, desprezo pela representação naturalista, indiferença
em relação aos críticos de arte e rejeição dos conceitos de harmonia e bom gosto aplicados à pintura.
Em 1912, participou da primeira exposição futurista. Suas obras ainda deixavam transparecer a preocupação do artista com os conceitos propostos pelo cubismo. Os retratos deformados pelas superposições de
planos ainda não conseguiam expressar com clareza sua concepção teórica. Um ano mais tarde, com sua obra Dinamismo de um Jogador de Futebol, Boccioni conseguiu finalmente fazer a representação do movimento por meio de cores e planos desordenados, como num pseudofotograma. Durante a Primeira Guerra Mundial, o
pintor se alistou como voluntário e ao voltar publicou o livro Pittura, Scultura Futurista, Dinâmico Plástico (Pintura, Escultura Futurista, Dinamismo Plástico). Morreu dois anos depois, em 1916, na cidade de Verona.
 

Fragmento "Fundação e manifesto do futurismo", 1908, publicado em 1909.

"Então, com o vulto coberto pela boa lama das fábricas - empaste de escórias metálicas, de suores inúteis, de fuliges celestes -, contundidos e enfaixados os braços, mas impávidos, ditamos nossas primeiras vontades a todos os homens vivos da terra:

1. Queremos cantar o amor do perigo, o hábito da energia e da temeridade.
2. A coragem, a audácia e a rebelião serão elementos essenciais da nossa poesia.
3. Até hoje a literatura tem exaltado a imobilidade pensativa, o êxtase e o sono. Queremos exaltar o movimento agressivo, a insônia febril, a velocidade, o salto mortal, a bofetada e o murro.
4. Afirmamos que a magnificência do mundo se enriqueceu de uma beleza nova: a beleza da velocidade. Um carro de corrida adornado de grossos tubos semelhantes a serpentes de hálito explosivo... um automóvel rugidor, que parece correr sobre a metralha, é mais belo que a Vitória de Samotrácia.
5. Queremos celebrar o homem que segura o volante, cuja haste ideal atravessa a Terra, lançada a toda velocidade no circuito de sua própria órbita.
6. O poeta deve prodigalizar-se com ardor, fausto e munificência, a fim de aumentar o entusiástico fervor dos elementos primordiais.
7. Já não há beleza senão na luta. Nenhuma obra que não tenha um caráter agressivo pode ser uma obra-prima. A poesia deve ser concebida como um violento assalto contra as forças ignotas para obrigá-las a prostrar-se ante o homem.
8. Estamos no promontório extremo dos séculos!... Por que haveremos de olhar para trás, se queremos arrombar as misteriosas portas do Impossível? O Tempo e o Espaço morreram ontem. Vivemos já o absoluto, pois criamos a eterna velocidade onipresente.
9. Queremos glorificar a guerra - única higiene do mundo -, o militarismo, o patriotismo, o gesto destruidor dos anarquistas, as belas idéias pelas quais se morre e o desprezo da mulher.
10. Queremos destruir os museus, as bibliotecas, as academias de todo tipo, e combater o moralismo, o feminismo e toda vileza oportunista e utilitária.
11. Cantaremos as grandes multidões agitadas pelo trabalho, pelo prazer ou pela sublevação; cantaremos a maré multicor e polifônica das revoluções nas capitais modernas; cantaremos o vibrante fervor noturno dos arsenais e dos estaleiros incendiados por violentas luas elétricas: as estações insaciáveis, devoradoras de serpentes fumegantes: as fábricas suspensas das nuvens pelos contorcidos fios de suas fumaças; as pontes semelhantes a ginastas gigantes que transpõem as fumaças, cintilantes ao sol com um fulgor de facas; os navios a vapor aventurosos que farejam o horizonte, as locomotivas de amplo peito que se empertigam sobre os trilhos como enormes cavalos de aço refreados por tubos e o vôo deslizante dos aeroplanos, cujas hélices se agitam ao vento como bandeiras e parecem aplaudir como uma multidão entusiasta.

É da Itália que lançamos ao mundo este manifesto de violência arrebatadora e incendiária com o qual fundamos o nosso Futurismo, porque queremos libertar este país de sua fétida gangrena de professores, arqueólogos, cicerones e antiquários.

Há muito tempo a Itália vem sendo um mercado de belchiores. Queremos libertá-la dos incontáveis museus que a cobrem de cemitérios inumeráveis.
Museus: cemitérios!... Idênticos, realmente, pela sinistra promiscuidade de tantos corpos que não se conhecem. Museus: dormitórios públicos onde se repousa sempre ao lado de seres odiados ou desconhecidos! Museus: absurdos dos matadouros dos pintores e escultores que se trucidam ferozmente a golpes de cores e linhas ao longo de suas paredes!
Que os visitemos em peregrinação uma vez por ano, como se visita o cemitério no dos dos mortos, tudo bem. Que uma vez por ano se desponta uma coroa de flores diante da Gioconda, vá lá. Mas não admitimos passear diariamente pelos museus nossas tristezas, nossa frágil coragem, nossa mórbida inquietude. Por que devemos nos envenenar? Por que devemos apodrecer?
E que se pode ver num velho quadro senão a fatigante contorção do artista que se empenhou em infringir as insuperáveis barreiras erguidas contra o desejo de exprimir inteiramente o seu sonho?... Admirar um quadro antigo equivalente a verter a nossa sensibilidade numa urna funerária, em vez de projetá-la para longe, em violentos arremessos de criação e de ação.
Quereis, pois, desperdiçar todas as vossas melhores forças nessa eterna e inútil admiração do passado, da qual saís fatalmente exaustos, diminuídos e espezinhados?
Em verdade eu vos digo que a frequentação cotidiana dos museus, das bibliotecas e das academias (cemitérios de esforços vãos, calvários de sonhos crucificados, registros de lances truncados!...) é, para os artistas, tão ruinosa quanto a tutela prolongada dos pais para certos jovens embriagados por seu os prisioneiros, vá lá: o admirável passado é talvez um bálsamo para tantos os seus males, já que para eles o futuro está barrado... Mas nós não queremos saber dele, do passado, nós, jovens e fortes futuristas!
Bem-vindos, pois, os alegres incendiários com seus dedos carbonizados! Ei-los!... Aqui!... Ponham fogo nas estantes das bibliotecas!... Desviem o curso dos canais para inundar os museus!... Oh, a alegria de ver flutuar à deriva, rasgadas e descoradas sobre as águas, as velhas telas gloriosas!... Empunhem as picaretas, os machados, os martelos e destruam sem piedade as cidades veneradas!
Os mais velhos dentre nós têm 30 anos: resta-nos assim, pelo menos um decênio mais jovens e válidos que nós jogarão no cesto de papéis, como manuscritos inúteis. - Pois é isso que queremos!
Nossos sucessores virão de longe contra nós, de toda parte, dançando à cadência alada dos seus primeiros cantos, estendendo os dedos aduncos de predadores e farejando caninamente, às portas das academias, o bom cheiro das nossas mentes em putrefação, já prometidas às catacumbas das bibliotecas.
Mas nós não estaremos lá... Por fim eles nos encontrarão - uma noite de inverno - em campo aberto, sob um triste galpão tamborilado por monótona chuva, e nos verão agachados junto aos nossos aeroplanos trepidantes, aquecendo as mãos ao fogo mesquinho proporcionado pelos nossos livros de hoje flamejando sob o vôo das nossas imagens.
Eles se amotinarão à nossa volta, ofegantes de angústia e despeito, e todos, exasperados pela nossa soberba, inestancável audácia, se precipitarão para matar-nos, impelidos por um ódio tanto mais mais implacável quanto seus corações estiverem ébrios de amor e admiração por nós.
A forte e sã Injustiça explodirá radiosa em seus olhos - A arte, de fato, não pode ser senão violência, crueldade e injustiça.
Os mais velhos dentre nós têm 30 anos: no entanto, temos já esbanjado tesouros, mil tesouros de força, de amor, de audácia, de astúcia e de vontade rude, precipitadamente, delirantemente, sem calcular, sem jamais hesitar, sem jamais repousar, até perder o fôlego... Olhai para nós! Ainda não estamos exaustos! Nossos corações não sentem nenhuma fadiga, porque estão nutridos de fogo, de ódio e de velocidade!... Estais admirados? É lógico, pois não vos recordais sequer de ter vivido! Eretos sobre o pináculo do mundo, mais uma vez lançamos o nosso desafio às estrelas!
Vós nos opondes objeções?... Basta! Basta! Já as conhecemos... Já entendemos!... Nossa bela e mendaz inteligência nos afirma que somos o resultado e o prolongamento dos nossos ancestrais. - Talvez!... Seja!... Mas que importa? Não queremos entender!... Ai de quem nos repetir essas palavras infames!...
Cabeça erguida!...
Eretos sobre o pináculo do mundo, mais uma vez lançamos o nosso desafio às estrelas."

(Teorias da Arte Moderna, H.B.Chipp, Martins Fontes, 1993)

Surrealismo

Nas duas primeiras décadas do século XX, os estudos psicanalíticos de Freud e as incertezas políticas criaram um clima favorável para o desenvolvimento de uma arte que criticava a cultura européia e a frágil condição humana diante de um mundo cada vez mais complexo. Surgem movimentos estéticos que interferem de maneira fantasiosa na realidade.
O surrealismo foi por excelência a corrente artística moderna da representação do irracional e do subconsciente. Suas origens devem ser buscadas no dadaísmo e na pintura metafísica de Giorgio De Chirico.
Este movimento artístico surge todas às vezes que a imaginação se manifesta livremente, sem o freio do espírito crítico, o que vale é o impulso psíquico. Os surrealistas deixam o mundo real para penetrarem no irreal, pois a emoção mais profunda do ser tem todas as possibilidades de se expressar apenas com a aproximação do fantástico, no ponto onde a razão humana perde o controle.

A publicação do Manifesto do Surrealismo, assinado por André Breton em outubro de 1924, marcou historicamente o nascimento do movimento. Nele se propunha a restauração dos sentimentos humanos e do
instinto como ponto de partida para uma nova linguagem artística. Para isso era preciso que o homem tivesse uma visão totalmente introspectiva de si mesmo e encontrasse esse ponto do espírito no qual a realidade interna e externa são percebidas totalmente isentas de contradições.

A livre associação e a análise dos sonhos, ambos métodos da psicanálise freudiana, transformaram-se nos procedimentos básicos do surrealismo, embora aplicados a seu modo. Por meio do automatismo, ou seja,
qualquer forma de expressão em que a mente não exercesse nenhum tipo de controle, os surrealistas tentavam
plasmar, seja por meio de formas abstratas ou figurativas simbólicas, as imagens da realidade mais profunda do
ser humano: o subconsciente.

O Surrealismo apresenta relações com o Futurismo e o Dadaísmo. No entanto, se os dadaístas propunham apenas a destruição, os surrealistas pregavam a destruição da sociedade em que viviam e a criação de uma nova, a ser organizada em outras bases. Os surrealistas pretendiam, dessa forma, atingir uma outra realidade, situada no plano do subconsciente e do inconsciente. A fantasia, os estados de tristeza e melancolia exerceram grande atração sobre os surrealistas, e nesse aspecto eles se aproximam dos românticos, embora sejam muito mais radicais.
Principais artistas 
Salvador Dali - é, sem dúvida, o mais conhecido dos artistas surrealistas. Estudou em Barcelona e depois
em Madri, na Academia de San Fernando. Nessa época teve oportunidade de conhecer Lorca e Buñuel. Suas primeiras obras são influenciadas pelo cubismo de Gris e pela pintura metafísica de Giorgio De Chirico. Finalmente aderiu ao surrealismo, junto com seu amigo Luis Buñuel, cineasta. Em 1924 o pintor foi expulso da Academia e começou a se interessar pela psicanálise de Freud, de grande importância ao longo de toda a sua
obra. Sua primeira viagem a Paris em 1927 foi fundamental para sua carreira. Fez amizade com Picasso e Breton e se entusiasmou com a obra de Tanguy e o maneirista Arcimboldo. O filme O Cão Andaluz, que
fez com Buñuel, data de 1929. Ele criou o conceito de “paranóia critica“  para referir-se à atitude de quem recusa a lógica que rege a vida comum das pessoas .Segundo ele, é preciso “contribuir para o total descrédito da realidade”. No final dos anos 30 foi várias vezes para a Itália a fim de estudar os grandes mestres. Instalou seu ateliê em Roma, embora continuasse viajando. Depois de conhecer em Londres Sigmund Freud, fez uma viagem para a América, onde publicou sua biografia A Vida Secreta de Salvador Dali (1942). Ao voltar, se estabeleceu definitivamente em Port Lligat com Gala, sua mulher, ex-mulher do poeta e amigo Paul Éluard. Desde 1970 até sua morte dedicou-se ao desenho e à construção de seu museu. Além da pintura ele desenvolveu esculturas e desenho de jóias e móveis.


fonte: http://www.historiadaarte.com.br/surrealismo.html

Dadaísmo

Formado em 1916 em Zurique por jovens franceses e alemães que, se tivessem permanecido em seus respectivos países, teriam sido convocados para o serviço militar, o Dada foi um movimento de negação. Durante a Primeira Guerra Mundial, artistas de várias nacionalidades, exilados na Suíça, eram contrários ao envolvimento dos seus próprios países na guerra.
Fundaram um movimento literário para expressar suas decepções em relação a incapacidade da ciências, religião, filosofia que se revelaram pouco eficazes em evitar a destruição da Europa. A palavra Dada foi descoberta acidentalmente por Hugo Ball e por Tzara Tristan num dicionário alemão-francês. Dada é uma palavra francesa que significa na linguagem infantil "cavalo de pau".  Esse nome escolhido não fazia sentido,  assim como a arte que perdera todo o sentido diante da irracionalidade da guerra.
Sua proposta é que a arte ficasse solta das amarras racionalistas e fosse apenas o resultado do automatismo psíquico, selecionado e combinando elementos por acaso. Sendo a negação total da cultura, o Dadaísmo defende o absurdo, a incoerência, a desordem, o caos. Politicamente , firma-se como um protesto contra uma civilização que não conseguiria evitar a guerra.
Ready-Made significa confeccionado, pronto. Expressão criada em 1913 pelo artista francês Marcel Duchamp para designar qualquer objeto manufaturado de consumo popular, tratado como objeto de arte por opção do artista.
O fim do Dada como atividade de grupo ocorreu por volta de 1921. 
Principais artistas:
Marcel Duchamp (1887-1968), pintor e escultor francês, sua arte abriu caminho para movimentos como a pop art e a op art das décadas de 1950 e 1960. Reinterpretou o cubismo a sua maneira, interessando-se pelo movimento das formas.
O experimentalismo e a provocação o conduziram a idéias radicais em arte, antes do surgimento do grupo Dada (Zurique, 1916). Criou os ready-mades, objetos escolhidos ao acaso, e que, após leve intervenção e receberem um título, adquiriam a condição de objeto de arte.
Em 1917 foi rejeitado ao enviar a uma mostra um urinol de louça que chamou de "Fonte". Depois fez interferências (pintou bigodes na Mona Lisa, para demonstrar seu desprezo pela arte tradicional), inventou mecanismos ópticos.

segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Fauvismo

Fauvismo é o nome dado à tendência estética na pintura que buscou explorar ao máximo a expressividade das cores na representação pictórica.
     O fauvismo teve origem no final do Século 19, ao contar com precursores como Paul Gauguin e Vincent Van Gogh.
     O estilo destes dois artistas, que trabalharam juntos no mesmo ateliê, guardava semelhanças e foi imitado pelos chamados fauvistas principalmente  no uso exacerbado das cores agressivas e a representação plana, que imprimia grande teor dramático à representação pictórica.
     A tendência fauvista não só revolucionou o uso das cores na pintura moderna como foi uma das origens dos posteriores movimentos de ruptura estética nas artes plásticas.
     O termo “fauvismo”, na verdade, teve origem a partir das observações corrosivas do crítico de arte Louis Vauxcelles após ter visitado uma mostra de pinturas de vários artistas, entre eles Henry Matisse. Vauxcelles utilizou a expressão “Les Fauves” ao se referir aos artistas.
     O uso pejorativo da expressão, que pode significar “os animais selvagens”, prevaleceu nas críticas imediatamente posteriores.
     Apesar da negação do rótulo e dos protestos pelos artistas integrados à nova tendência, que não chegaram a lançar nenhum manifesto teórico de afirmação e nomeação da sua linha estética, o termo “fauvismo” acabou permanecendo, talvez indevidamente, nos estudos da história da arte.
     Tendo curto período de existência, o que caracterizaria os movimentos vanguardistas posteriores, o “fauvismo” reuniu sob a liderança de Matisse pintores como Georges Braque, Andre Derain, Georges Roualt, Kees van Dongen e Raoul Dufy.
BRAQUE (Georges), pintor francês (Argenteuil, 1882 - Paris, 1963). Iniciador do cubismo, com Picasso, é autor de naturezas-mortas.
DERAIN (André), pintor francês (Chatou, 1880 – Garches, 1954). Um dos principais representantes do fauvismo.
DUFY (Raoul), pintor, gravador e decorador francês (Le Havre, 1877 – Forcalquier, 1953). Impressionista a princípio, mais tarde influenciado por Toulouse-Lautrec, e pelo fauvismo, destacou-se também como gravador (Bestiário) e em trabalhos de tapeçaria (Caçador). Distinguiu-se sobretudo com A fada Eletricidade, vasta decoração para o pavilhão da Eletricidade, na Exposição Internacional de 1937 (Paris).



Pós impressionismo

Pós-Impressionismo é o nome que se dá a diferentes estilos e tendências artísticas cuja origem encontra-se no Impressionismo, tanto como uma reação contrária a ele como visando um desenvolvimento maior da escola.
     A maioria dos artistas considerados pós-impressionistas participaram das exibições impressionistas, mas acabaram por tomar outros rumos na realização de sua arte. A forma das pinturas, o tratamento das cores ou a linha podiam ser objetos de discordância com os impressionistas.
     Tendências como o simbolismo e até o expressionismo já se encontram nas obras de alguns desses pintores pós-impressionistas.
     As divergências dos principais nomes considerados pós-impressionistas com os impressionistas normalmente se concentravam na momentaneidade e extrema subjetividade enevoada em que os últimos baseavam seus trabalhos ou as tendências naturalistas do impressionismo.
      Essas divergências, entretanto, manifestavam-se de maneiras e intensidades diferentes nos vários estilos pós-impressionistas.
     Os movimentos modernistas, também, devem muito ao pós-impressionismo, principalmente pela figura de Paul Cézanne (1839 - 1906) e sua obstinação em alcançar a natureza real atrás das aparências, criar uma arte com vida própria, “concretizar“ suas impressões pessoais e “realizar o motivo“.
     Acredita-se que de uma forma ou de outra, como por, exemplo, a compreensão considerada errônea realizada pelo cubismo da pintura do artista, todos os artistas e movimentos expressivos do Século 20 tenham sido influenciados por Cèzanne.
     O Neo-Impressionismo de Seraut e sua extrema valorização das cores também estão inseridos dentro dessa tendência maior pós-impressionista.
     Gauguin e a proximidade de sua obra com o movimento poético simbolista, sobrevalorizando as idéias e desprezando o naturalismo, também é considerado um pós-impressionista.
     Van Gogh, e seu mundo atormentado, foi outro artista de extrema importância da pintura do Século 19, considerado um dos precursores do expressionismo que pode ser encaixado dentro dessas tendências pós-impressionistas.
     Até mesmo Toulouse-Lautrec, conhecido pela particularidade de seu estilo, que se desenvolveu independentemente de escolas ou movimentos, pode ser visto como um artista afinado com as tendências pós-impressionistas.
Fonte: Enciclopédia Digital Master.

Impressionismo

A impressão do momento
     O nome Impressionismo, como tantos outros exemplos na História da Arte (os termos gótico ou maneirismo, por exemplo), inicialmente teve um cunho pejorativo.
     Foi um rótulo colocado ao trabalho de um grupo de artistas que, de acordo com os críticos da época, acreditavam na impressão do momento como algo tão importante que se bastava por si mesa, dispensando as técnicas tradicionais acadêmicas.
     Esses artistas realizaram inúmeras exposições em Paris entre 1874 e 1886, porém, sua aceitação pelo público foi lenta e sofrida, pela incompreensão ao trabalho realizado.
     Ridicularizados inicialmente pela crítica por não seguirem a tradição pictórica que vinha sendo solidificada desde o renascimento, acabaram por, paulatinamente, obter o respeito e aceitação de suas “novas técnicas“ por parte do público. E, como acontece em muitas ocasiões, a crítica foi a reboque dos acontecimentos.
A busca da imagem
ao natural
     Os objetos retratados ao ar livre, sob a luz natural, eram bastante valorizados pelos impressionistas. O volume e solidez, características que a pintura tradicional pregava como fundamentais para uma obra de arte existir, começaram a ser desrespeitados, abrindo caminho para as vanguardas estéticas do Século 19.
     Quanto à fidelidade com o objeto retratado, não se pode dizer que os impressionistas não a desejassem, mas buscavam essa fidelidade à sua maneira.
     Com efeito, os impressionistas faziam suas pinturas fora das convenções artísticas, mas, de preferência, sob os efeitos do olhar e das mudanças da luz diária.
     Nesse sentido pode-se dizer que são descendentes do Realismo. As cores eram de fundamental importância para o grupo, elemento extremamente expressivo em sua arte.
A importância do pincel na
formulação da obra
     A frescura da impressão que um objeto causava ao artista deveria ser captada pelas pinceladas. Os objetos retratados seriam aqueles percebidos pela visão como paisagens, retratos, cenas do cotidiano.
     Duas influências foram fundamentais para o movimento: as estampas japonesas que popularizam-se na Europa no final do Século 19, com seu desrespeito à perspectiva e às normas de composição da academia ocidental - suas formas repletas de vida encantavam os impressionistas - e a invenção da fotografia.
Monet e Pissarro
     Claude Monet (1840 - 1926) é considerado o fundador do Impressionismo. São famosas suas pesquisas em cima dos ideais impressionistas, como a representação de um objeto em diferentes horas do dia e sob diferentes luzes.
     Camille Pissarro (1831 - 1903), com sua ênfase no método e o forte efeito que seus quadros exprimem, por terem sido executados quase que acidentalmente, foi outra grande influência para importantes nomes impressionistas.
     Foi um dos pintores que mais ajudou, com sua obra e formulações teóricas, a aceitação por parte da opinião pública do conceito de que a visão do artista interfere na percepção da obra.
     Um bom exemplo de seu trabalho pode ser dado por “O Boulevard des Italiens, Manhã de Sol“, com suas figuras indistintas.
Mulheres na pintura
impressionista
     Berthe Morisot e Mary Cassat eram as duas mulheres que faziam parte do grupo impressionista.
MORISOT (Berthe), pintora francesa (Bourges, 1841 - Paris, 1895), cunhada de Manet. Praticou um impressionismo elegante.
CASSATT (Mary), pintora e gravadora norte-americana (Pittsburgh, 1844 - Le Mesnil, França, 1926). Radicada em Paris, foi amiga de Degas, que a orientou. Juntou-se aos impressionistas da escola de Paris e ganhou reputação internacional.
     Acredita-se que tenha sido Morisot quem levou Edouard Manet, seu cunhado, ao Impressionismo. É exemplo da obra de Morisot, a “Vista de Paris do Trocadero“, em que retrata a cidade baseando-se na vista de cima.
     Cassat, por sua vez, era uma das artistas do conjunto cuja influência das estampas japonesas era mais nítida em seu trabalho. Seus trabalhos versavam sobre temas domésticos, tratados de forma simples e direta. “O Banho“ é uma boa amostra deles.
Renoir e Degas
     Pierre Auguste Renoir e Edgar Degas são outros dois importantes nomes do movimento.
     Merece citação especial o nome de Édouard Manet (1823 - 1883), que, apesar de nunca ter exposto com os impressionistas, realizava algumas de suas pinturas obedecendo a esse estilo.
     Sua carreira passou por diversas fases e costuma ser considerado tanto um pintor impressionista como realista.
     Antes de os impressionistas começarem a expor, Degas já havia quebrado as regras de pintura acadêmica, obtendo aceitação da crítica um pouco antes de seus companheiros.
     Sua obra “O Balcão“, com damas de cabeças quase que planas, valorizando as imagens como realmente percebidas pelo olhar e não como deveriam ser tecnicamente, chocou inicialmente a opinião pública, quando exposta, em 1869.
Além das fronteiras
     Além da França, o Impressionismo acaba se espalhando por outros países. Destaques são americanos como Childe Hassam (1859-1935), Maurice Prendergast (1859-1924) e James Abbott McNeill Whistler (1834-1903), este último, um dos primeiros artistas ocidentais a perceber o valor das estampas japonesas.
WHISTLER (James), pintor norte-americano (Lowell, 1834 - Londres, 1903). Autor de retratos e quadros de estilo próximo ao dos impressionistas.
     Além disso, o Impressionismo foi ponto de partida para inúmeros artistas desenvolverem seu estilo próprio. Exemplos podem ser dados por Toulouse-Lautrec, Van Gogh e Paul Cézanne.
Fontes: Enciclopédia Digital Master.
              Enciclopédia Koogan-Houaiss.

Vanguardas

Desde as últimas décadas do Século 19, a História da Arte assistia a profundas modificações e rupturas. Os modelos que vinham sendo valorizados desde a época do Renascimento Italiano pelas academias começavam a ser realmente questionados.
     Os artistas, acompanhando as mudanças sociais, econômicas, políticas e filosóficas do mundo, passavam a desejar novas expressões artísticas.
     O desenvolvimento das vanguardas européias do Século 20 está intimamente relacionado com os artistas da geração anterior, que abriram caminho para as gerações seguintes.
     Os Impressionistas, os Pós-Impressionistas e até mesmo os Realistas foram os verdadeiros pioneiros das transformações artísticas que marcariam a arte moderna.
Os primeiros sinais
de contestação
SEURAT (Georges), pintor francês (Paris, 1859 - id., 1891), iniciador e mestre do pontilhismo.Muito além do
Impressionismo
A Europa na vanguardaMovimentos «rebeldes»
se multiplicam
A filosofia é o princípio
de tudo
Fonte: Enciclopédia Digital Master.
            Enciclopédia Koogan-Houaiss.

     Artistas do final do século, independentemente de pertencerem a qualquer escola, também tiveram influência espantosa sobre a arte moderna.
     Destaca-se, em particular, Paul Cézanne e sua obsessão em imprimir objetividade à forma de encarar o mundo. Pode ser considerado o verdadeiro exemplo para a arte moderna, exercendo alguma influência em todos os movimentos e artistas de projeção do século XX.
     Georges Seraut (1859 -1891), apesar de ter morrido prematuramente, também é considerado um dos grandes precursores da arte moderna, dando expressão artística à mentalidade científica de sua época, incorporando, por exemplo, estudos de ótica e cor às suas concepções artísticas e adicionando a eles suas refinadas descobertas estéticas.
     Van Gogh pode ser considerado uma terceira influência decisiva sobre a arte do século XX. Além deles (mas talvez não em tão profunda escala) podem ser colocados Gauguin, Pissaro e Signac.
PISSARRO (Camille), pintor francês de origem judaica sefaradita (Saint-Thomas, Antilhas, 1830 - Paris, 1903). Um dos mestres do impressionismo, pintou principalmente paisagens, animadas freqüentemente por personagens e cenas rústicas.
SIGNAC (Paul), pintor francês (Paris, l863 - id., 1935). Praticou o divisionismo, do qual foi o teórico.
     É importante pontuar que essa influências, às vezes, manifestaram-se pela negação de algum aspecto do trabalho do artista ou mesmo pela compreensão limitada ou desvirtuada de sua obra.
     O Século 20, sem dúvida, foi uma época de profundas transformações em todas as esferas da experiência humana e os artistas não podiam manter-se alheios a essas mudanças, o que em parte justifica a profusão de movimentos e ideais artísticos que nele surgiram.
     Entretanto, resta a dúvida: todas as mudanças na arte foram realmente típicas desse conturbado período da História ou apenas tivemos mais acesso a cada mínima manifestação artística devido ao desenvolvimento dos meios de comunicação?
     De qualquer forma, tratam-se de contribuições à História da Arte extremamente marcantes e, apesar do artista e sua criação serem considerados únicos e autônomos, não se pode alienar sua produção do momento histórico e das mudanças de mentalidade que assistimos nesse século.
     Um dado curioso exemplificando essas tendências maiores que movem uma geração, pode ser o encontro em Paris de praticamente todas as importantes figuras que marcariam as vanguardas, vindos de todas as partes do mundo.
     Além de Paris, e em menor escala, apesar da importância, Munique foi outro importante centro vanguardista europeu.
     Os Fauves (as Feras), liderados pela figura de Henri Matisse (1869-1954) começaram com uma reação ao divisionismo metódico (ver Neo-Impressionismo) e assumiram características expressionistas.
     O Fauvismo pode ser classificado entre os primeiros grupos de vanguarda, pois, apesar da curta duração  (1905 a 1908)  e da incoerência associada a ele,  agrupou e influenciou figuras importantes da arte moderna, como André Durain (1880-1954), Georges Braque e exerceu influência, por exemplo, sobre Picasso.
     Os expressionistas alemães, agrupados no Die Brücke, Dresdem e Der Blaue Reiter, Munique foram outras importantes influências para a Arte Moderna.
     Desse mesmo período é o Cubismo, o Futurismo e posteriormente o Dadaismo e o Surrealismo, os movimentos da vanguarda européia mais conhecidos e que exerceram influência sobre toda a arte do século XX. O Construtivismo, o Suprematismo e o Neoplasticismo, originados principalmente do Cubismo, também foram movimentos importantes do início do século.
SUPREMATISMO s.m. Teoria e prática do pintor russo Malevitch (a partir de 1913) e seus epígonos, tais como Lissitzky, Ivan Klioune, Olga Rozanova. (Foi o primeiro movimento de pura abstração geométrica da pintura.)
     Um dado curioso dos movimentos vanguardistas do Século 20 é o fato de normalmente terem origem em idéias filosóficas.
     Estas idéias podem receber, a princípio, expressão na literatura e poesia, para posteriormente passar às artes plásticas, como é o caso mais específico do Surrealismo e do Futurismo.
     Além disso, a popularidade entre os artistas das teorias, que justificavam a arte, também foi grande, como as obras extremamente lidas e comentadas entre os círculos vanguardistas da época: "Do espiritual na Arte", de Kandinsky (1912) e "Abstração e Sentimento" (1908) de Wilhelm Worringer.
     Em muito ajudou a formação de grupos que, normalmente. estava relacionada à necessidade de sobrevivência material e a facilidade de transmissão de idéias, uma vez que, apesar de aparentemente expressarem os mesmo ideais, eram constituídos por personalidades e estilos pessoais bastante fortes e distintos.

domingo, 27 de fevereiro de 2011

RPG e Ensino

Pouco difundido nos meios educacionais, o Rpg (ou role playing game) talvez seja o jogo mais “temido”, “discriminado”, e ao mesmo tempo amado por jovens e adultos de todas as idades, seja pela interação entre os jogadores, ou pela diversão que proporciona. Todavia, é seu cunho cognitivo que o faz ser um recurso importante para o ensino de Língua Portuguesa e Literatura. É comum nas escolas estaduais os alunos apresentarem uma certa resistência às leituras propostas, sobretudo aos clássicos literários. Questões como “por que ler?” e “que importância pode ter para mim uma história de outra época?” são apenas algumas das dificuldades que o professor encontra em sua prática quotidiana.
O processo de construção do texto literário em Rpg necessita de um narrador atento, com personagens que interajam diretamente com o texto. A partir desta relação, a história torna-se um ato lúdico e intrínseco, gerando várias possibilidades de reconstrução e significações.
Mas, afinal, o que é o RPG? O Rpg é um jogo de interpretação, semelhante a uma peça de teatro, no qual não há um roteiro rígido a ser seguido, mas sucessões de fatos, desenvolvidos consoante a participação das personagens representadas pelos jogadores e mediadas por um ‘mestre.”
O mestre da crônica é o responsável pelo fio condutor que norteia o jogo. É de sua responsabilidade determinar, por meio do uso de dados ou apenas de lógica, se as personagens obterão ou não sucesso em suas ações. O mestre também representa os NPCs, ou seja, personagens não jogadoras, que servem como coadjuvantes e são essenciais para o desenvolvimento da trama.
No ensino de literatura, através da pesquisa e da leitura, o aluno tende a compreender de uma maneira mais próxima a realidade e o contexto de uma época a partir da composição e das características do papel que representará. Um exemplo de tal experiência foi desenvolvido para a aula de pós-graduação Lato-sensu da Universidade Católica de Santos, mais precisamente durante as aulas de Literatura Brasileira. A obra delimitada foi “Memórias de um sargento de milícias”, que por sua linguagem distante da atual é pouco usada, normalmente, para a prática de leitura de obras literárias em sala de aula. Num primeiro momento, o professor da série em questão deve explicar quais são os objetivos do jogo. Cada aluno representaria uma personagem, porém, para que os prelúdios fossem compostos, era necessário que cada um desenvolvesse e discutisse as peculiaridades da classe de personagem que representaria: comadre, miliciano, mestre de reza, cigano, compadre ou “amigo”, fato que os leva a mergulhar no universo literário de maneira prazerosa e atraente.
Enquanto utensílio instrução ou simples forma de entretenimento, a prática literária mediante o uso do Rpg é uma jóia (ainda) a descobrir. Resta, assim, a confiança de que um dia a literatura lúdica deixe de ser vista com o olhar da censura e da desconfiança e passe a ser concebida como uma alternativa de ensino válida e eficaz.

Porquinho-da-índia: uma análise preliminar

PORQUINHO-DA-ÍNDIA

Quando eu tinha seis anos
Ganhei um porquinho-da-índia.
Que dor de coração eu tinha
Porque o bichinho só queria estar debaixo do fogão!
Levava ele pra sala
Pra os lugares mais bonitos, mais limpinhos,
Ele não se importava:
Queria era estar debaixo do fogão.
Não fazia caso nenhum das minhas ternurinhas...
- O meu porquinho-da-índia foi a minha primeira namorada.

Porquinho-da-índia, poema de Manuel Bandeira, apresenta uma construção assimétrica que reflete o repertório de lembranças do eu poético, por meio de uma linguagem coloquial e emotiva, desdobrada entre o passado e o presente. Assim sendo, a leitura proposta tem por objetivo analisar os elementos intratextuais que justifiquem a abordagem mencionada, tendo por base a teoria proposta por Norma Goldistein em Versos, sons, ritmos.
Inicialmente, podem-se destacar duas palavras-chave: eu e porquinho-da-índia. A partir do “eu”, sujeito ímpar da construção lírica, o leitor é levado ao repertório de memórias de “uma criança de seis” anos que tem contato com seu primeiro objeto de afeto (porquinho). Vejamos:

Quando eu tinha seis anos
Ganhei um porquinho-da-índia.

A presença do “eu” é introduzida pela proposição do advérbio temporal (quando), que somado aos dois verbos no pretérito (tinha e ganhei) reforça a significação do passado. A idéia de posse (tinha) está no pretérito imperfeito, que denota uma ação interrompida, fato que de certa forma propõe que o objeto direto (porquinho) não existe mais no aspecto real, já o segundo verbo (ganhei) reflete uma ação completa e realizada, uma das poucas que integram PORQUINHO-AS-ÍNDIA.

Durante a leitura, os verbos no pretérito imperfeito predominam, sobretudo, no que corresponde às emoções.
Que dor de coração eu tinha
Porque o bichinho só queria estar debaixo do fogão!
Levava ele pra sala
Pra os lugares mais bonitos, mais limpinhos,
Ele não se importava:
Queria era estar debaixo do fogão.
Não fazia caso nenhum das minhas ternurinhas...






Apesar do jogo sonoro (aliteração dos fonemas s,n,m e assonância das vogais a, o), não é possível identificar regularidade na metrificação, o que Norma Goldstein classifica como “versos brancos” .
O ritmo é conferido consoante a leitura, e a repetição de palavras (porquinho e fogão, no segundo eixo poético, destinado à descrição do “objeto” referido nos dois versos iniciais).
Os versos, em sua composição estrutural, não obedecem a nenhuma regra de versificação, o que os classifica como “livres”, posto que há uma irregularidade que só obedece às pausas de pensamento do “eu”, divididas em apresentação do objeto e situação temporal (Quando eu tinha seis anos/Ganhei um porquinho-da-índia), retomada dos sentimentos por meio da memória (Que dor de coração eu tinha/Porque o bichinho só queria estar debaixo do fogão! ), descrição das ações do porquinho (Levava ele pra sala/Pra os lugares mais bonitos, mais limpinhos,
Ele não se importava:/Queria era estar debaixo do fogão), reflexão melancólica (Não fazia caso nenhum das minhas ternurinhas... ) e, por fim, situação presente que compara dois objetos (O meu porquinho-da-índia foi a minha primeira namorada).
A “inexistência” de rimas (versos brancos) na décima de Manuel Bandeira é reforçada pelo encadeamento poético, que é proposto de modo coloquial. A presença de palavras no diminutivo (ternurinhas, limpinhos, bichinho), por exemplo, enfatizam o universo infantil, delimitado na expressão numérica “seis anos”.
No campo semântico o caráter diminutivo aproxima o substantivo abstrato (ternurinhas) do substantivo concreto (porquinho-da-índia), construindo a imagem afetiva que ainda persiste na vida adulta. Ao comparar o porquinho com sua primeira namorada (consoante o uso do pretérito perfeito) há uma possível conexão entre os dois objetos de afeto, aproximados pelo “descaso” que possivelmente nutriam pelo sujeito. A preferência por ficar debaixo do fogão, todavia, pode ser de certo modo uma alusão metafórica a liberdade de escolha, já que apesar da insistência, o objeto amado tem uma vontade independente. Vontade análoga e, numa interpretação do universo feminino, extremamente singular.

A construção do desejo em "A carne de René", de Virgílio Piñera

A carne de René, romance de Virgílio Piñera, narra a trajetória da personagem-título e seu conflito pessoal ante a “santa causa do pai”, um inveterado consumidor de carne e “revolucionário” membro de uma resistência que pregava o livre consumo de chocolate. Vejamos:

“Esta excitação - que chega as fronteiras da histeria, é causada pela venda livre da carne. O público poderá comprar todo filé, toda alcatra, toda picanha, todas as bistecas e costelas que quiser, ois de gosto mais exigente comprarão belos lombos, de porco ou delicadas pernas de cordeiro.
( PIÑERA, 2003, p. 7)

Palavra de aspecto polissêmico, a carne nos remete a uma dupla perspectiva: uma denotativa, marcada pela cobiça do objeto real, e outra conotada, encadeada pela observação da ‘carne” do protagonista.

E, coisa estranha, esse ar que pedia proteção se manifestava em sua carne de vítima propiciatória. A senhora Perez a imaginava ferida por um punhal ou perfurada por uma bala, ou pensava em seu uso prazenteiro ou doloroso. Quando seus olhos viram pela primeira vez a carne de René, experimentou a desagradável e angustiosa sensação de que essa carne estava a dois dedos de ser atropelada (...) Uma carne tão exposta prometia gozos inescrutáveis à carne que tivesse a felicidade de obtê-la no caminho da vida”
( PIÑERA, 2003, p. 9)

A carne “real”, pode ser associada ao ato de alimentação, contudo, a carne conotada, numa leitura possível, remete ao aspecto sexual, ao desejo “carnal”, que contrasta com a ausência de interesse por parte de René.

René é filho de Ramón, que tem acentuado gosto pela carne, uma preferência tão apaixonada que é todo um sacerdócio e até uma dinastia, algo que se transmite de pai para filho.
( PIÑERA, 2003, p. 8)

Saindo de sua concentração passou um olhar pelo público. Os olhos de René tropeçaram nos da senhora Perez, que não havia tirado os seus de cima dele. Ela vivia em silencio apaixonada pela carne de René.
( idem, p. 9)

Conforme nos lembra Salvatore d’Onofrio em Poema e Narrativa: Estruturas, um sema se distingue de outro por relações de semelhança ou diferenças. Logo, na obra há uma constituição por aproximação significativa.

Enquanto sema contextual, que é variável, a “carne” tem seu significado alterado ou intensificado em relação ao enunciado, o que algumas vezes, deixa de ter seu sentido denotado e passa a ser metafórico. A metáfora, por sua vez, é construída pela relação sintagmática de dois significantes apresentados como semelhantes, pressupondo a existência de um texto e de um contexto que aponte a relação de (in)compatibilidade de um signo com o outro. Ainda com referência à metáfora, Roland Barthes ( LA Métaphore de l ‘oeil, em Essais critiques) a define como a mistura ou cadência de dois significantes, cujos termos não são mais associados segundo o uso tradicional. A figura anterior, por conseguinte, apresenta o eixo que “une” as ‘duas carnes".

Uma das vertentes plausíveis da metáfora é a metaforização por simbologia, classificada como dotada de uma imagem capaz de revelar um sentido oculto. (Onofrio, p.115).

_ Mina encantadora senhora- respondeu Ramón com ironia-, vejo que se interessa muito pelo destino de René. Não se preocupe, a carne de meu filho florescerá no devido tempo.
_ É encantador ouvi-lo dizer isso, senhor. Quando ouço a palavra florescer; a alma volta ao meu corpo. E se em alguma coisa eu puder ser útil para esse florescimento, estou à disposição de seu filho.
René ruborizou-se. Dália fez com que se ruborizasse. O sangue de Ramón subiu-lhe a cabeça. Devia pôr essa mulher para fora a pontapés?
Mas Dália não lhe deu tempo.
( PIÑERA, 2003, p. 23)

Analisando a vertente simbólica, é admissível compreender seu estado de significação como dúbio. As acepções que cercam tal palavra, de acordo com o Dicionário de Símbolos de Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, remetem ao aspecto humano, natural e animal. A vertente humana da metáfora carne, designa a natureza de todo e qualquer indivíduo, funcionando como uma espécie de antagonismo ao espírito, ao sublime e ao sagrado: o pecado é carne endurecida:

_ Está vendo este braço? Pois ele, sozinho, é capaz de comunicar tanto calor à sua carne que seria como se tivesse sido posta no forno.
Unindo a ação à palavra, deixou-o cair sobre o peito de René com a mesma suavidade com que uma serpente rasteja. A mão, semelhante à cabeça da serpente, começou a passar seus dedos pela superfície do peito.
( PIÑERA, 2003, p. 139)

Mas ela não ia permitir isso; afinal era a supermestra: o mequetrefe agora não escaparia. Apertou mais forte ainda com seus braços e pernas e, sem perda de tempo, meteu a língua na boca de René. O corpo dele estremeceu, curvou-se um pouco e finalmente endureceu. Dália sentiu as carnes de René endurecendo lentamente.
( PIÑERA, 2003, p. 141)


O referido “pecado”, presumido também pela figura da serpente é reforçado pela atmosfera erótica e sensual que envolve as personagens. Assim, a “carne endurecida” sugestiona uma “correspondência física” de René, ante a investida de Dália Perez, a “mestra” e iniciadora do jovem na vida sexual.
Retomando Chevalier, o homem encontra-se dilacerado entre a carne e o espírito, despedaçado pela dupla tendência que o anima, que pode ser conceituada como um jogo de oposição, centrado na aversão metafórica do prazer (o sofrimento), que permeia o romance em variados momentos.

Começou a amolecer? Excelente remédio, a língua...Mas poucas palavras e mais ação. Vamos continuar, agora, com este olho; olha para mim desafiante, e isso não é certo numa escola.( PIÑERA, 2003, p. 93)

Mas a carne que se estende sobre a mesa de tortura, essa carne para a qual o acaso de um acidente não importa (já que seu último fim é ser trucidada), numa palavra, essa carne pronta para o serviço da dor não é um insano desafio ao instinto de conservação? Não constitui um perigoso convite ao suicídio coletivo? Não é uma loucura que, para guardar um segredo, um homem ofereça a sua carne, e que para arrancá-lo, outro homem se resolva a sacrificá-la?
( Idem, p. 111)

A senhora Perez, denominada mestra do prazer, contrasta nitidamente com os professores da estranha escola em que René permanece desde que recebeu o “fardo’ familiar de continuar a revolução pela “santa causa do chocolate”. Amolecer a carne, por conseguinte, é uma possível alusão para o ato de ceder diante do sofrimento e da tortura. Já o ato de endurecer, no que tange à escola, pode propor uma rebeldia velada diante das normas institucionais.

É possível, assim, notar que a constituição metafórica está intrinsecamente ligada ao contexto. Todavia, o erotismo, mesmo em situações que não refletem a carne exatamente como sema do desejo, surge dissimulado em signos como a língua. Símbolo da chama, ela é descrita por Chevalier como capaz de destruir ou purificar. Do mesmo modo que na escola é usada para purificar a “rebeldia” da carne de René, que reluta em aceitar seu papel na revolução, num outro plano é a responsável pelo apelo carnal, pela destruição de sua inocência, como temos no exemplo a seguir:

Saltou alegremente e encolheu-se o peito de René. Sua grossa, longa língua- pastosa e vermelha- brotou feito uma chama. O relógio do corredor bateu sete vezes. Leitão começou a trabalhar a cara de René com a língua acariciadora. Escolheu uma zona, o pômulo direito, e iniciou o seu trabalho de escavação.
( PIÑERA, 2003, p. 93)
O líquido tinha caído em suas entranhas e as queimava, mas ao mesmo tempo seu cérebro se perdia numa bruma dourada e cálida. Agora, Dália, como se estivesse somando seus empenhos aos do conhaque, apertava suas ancas com as pernas, enroscando os braços em torno do seu pescoço, e grudava sua boca na dele. René quase gritou quando viu que Dália esticava a língua disposta a lambê-lo, ou pelo menos achou que ia fazer isso ao evocar a cena das línguas lambedoras da escola.
( idem, p. 141)

Algumas palavras dos trechos anteriores retomam a idéia de erotismo. O primeiro fragmento supostamente é uma tentativa de amaciar a carne para o “trabalho revolucionário”, ao passo que o segundo antecede a volúpia e a luxúria entre o jovem René e Dália Perez. Contudo, a justaposição de significações não remete necessariamente ao contraste, mas a um “amalgama” em que a carne de René é o fio condutor, a razão e a necessidade dos outros.
Analisando a obra num aspecto mais abrangente, a carne oferece uma gradação ao longo da trama, já que num primeiro momento o prisma oscila entre a carne do açougue ou o belo corpo de René, que despertam o mesmo desejo (inclusive com salivação); desdobrando-se na escola entre o desejo de liberdade e identidade, somados ao caminho da dor; ou o prazer e o não-prazer nos braços da Senhora Perez e, por fim, fecha-se o movimento cíclico metafórico na vertente do desejo ambíguo de carne, iniciado no açougue, como temos:


Retomando a teoria de Onofrio, é pertinente afirmar que a estrutura metafórica é passível de uma definição, pertinente ao eixo expressão-conteúdo, entretanto, o desenvolvimento narrativo retoma a metáfora como uma fusão de vários elementos que originam e encadeiam a constituição de uma linguagem figurada plural, com variadas expressões e conteúdos que se ampliam e complementam.
Um desdobramento peculiar ocorre quando René passa a ter consciência de que é feito de carne e, depois, quando recebe a visita do descarnado, como temos:
Um belo dia, René teve a comprovação definitiva de que era feito de carne. Foi preciso, para isso, um ano inteiro e a sucessão de diversas experiências que culminaram numa memorável tarde do mês de junho.
( PIÑERA, 2003, p. 221)

Só tratava com ossos puros; os cavadores os deixavam empilhados, e ele os transportava até o grande ossário. Assim, estava longe da carne, e que segurança era contemplar esses ossos sabendo que ninguém, na face da terra se interessaria por sua pessoa para comprometê-la na batalha pela carne.
(idem, p.221)

É necessário mencionar que René passa por um processo de amadurecimento. Todavia, ao saber que é carne, no sentido de ser humano, resolve buscar o oposto no trabalhando no cemitério, a fim de lidar com os “ossos” e a “não-carne”, e, em contraponto, negando a si mesmo, como a sentença grifada reflete. É no cemitério, também, que René vê seus duplo ser enterrado, o que provoca sua redenção.

Em nenhum momento passou pela cabeça que o morto fosse o seu duplo. Pensou num velhinho ou num senhor, mas nunca num jovem como ele. De todas as maneiras, tinha decidido ver a cara do morto (...) Levantou-a e dentro do ataúde repousava, usando o mesmo terno com que havia conhecido, seu duplo. Parecia que acabava de ser assassinado.
(PIÑERA, 2003, p. 221)

Outro elemento que complementa o amadurecimento de René é a visita daquele que não tem carne, uma espécie de ser que viveu o martírio antecipadamente (p.231). O descarnado, assim, funciona como um espelho disforme da realidade da personagem, que numa dicotomia latente parece condensar uma perspectiva de “paz” e “conflito”. Vejamos:

Se era certa a explicação do velhinho, se essa tese tão descabelada podia acabar sendo verídica, então ele também obteria o seu descarnamento...
(idem, p. 231)

Não, ele não tinha escapatória e muito menos a sorte desse louco descarnado, que tinha até a suprema vantagem de que nenhum poder humano lhe restituiria a carne perdida. Pelo contrário, a sua crescia mais e melhor a cada dia.
(Idem, p. 232)

A carne de René, provoca em Dália frenesi com profunda salvação e, no final do romance, pesado como uma porção de carne, notamos uma última metáfora, a carne próspera, voluptuosa, que não é mais desejo ou sofrimento, é a aceitação da condição humana, na qual a dor e o prazer chegam por vias opostas (p.139) e ao mesmo tempo, tentadoras.






Bibliografia:
• CRISTÓFANI Barreto, Teresa. A LIBÉLULA, A PITONISA - Revolução, homossexualismo e literatura em Virgilio Piñeira. São Paulo. Iluminuras. P.200.
• PESCUMA, Derna. Trabalho Acadêmico, O que é? Como fazer? Um guia para suas apresentações. São Paulo: Olho d’Água, 2003.
• PIÑERA, Virgílio. A Carne de René. São Paulo: ARX, 2003. p. 240.
• D’ONOFRIO, Salvatore. Poema e Narrativa: estruturas. São Paulo: Duas Cidades.