domingo, 27 de fevereiro de 2011

A construção do desejo em "A carne de René", de Virgílio Piñera

A carne de René, romance de Virgílio Piñera, narra a trajetória da personagem-título e seu conflito pessoal ante a “santa causa do pai”, um inveterado consumidor de carne e “revolucionário” membro de uma resistência que pregava o livre consumo de chocolate. Vejamos:

“Esta excitação - que chega as fronteiras da histeria, é causada pela venda livre da carne. O público poderá comprar todo filé, toda alcatra, toda picanha, todas as bistecas e costelas que quiser, ois de gosto mais exigente comprarão belos lombos, de porco ou delicadas pernas de cordeiro.
( PIÑERA, 2003, p. 7)

Palavra de aspecto polissêmico, a carne nos remete a uma dupla perspectiva: uma denotativa, marcada pela cobiça do objeto real, e outra conotada, encadeada pela observação da ‘carne” do protagonista.

E, coisa estranha, esse ar que pedia proteção se manifestava em sua carne de vítima propiciatória. A senhora Perez a imaginava ferida por um punhal ou perfurada por uma bala, ou pensava em seu uso prazenteiro ou doloroso. Quando seus olhos viram pela primeira vez a carne de René, experimentou a desagradável e angustiosa sensação de que essa carne estava a dois dedos de ser atropelada (...) Uma carne tão exposta prometia gozos inescrutáveis à carne que tivesse a felicidade de obtê-la no caminho da vida”
( PIÑERA, 2003, p. 9)

A carne “real”, pode ser associada ao ato de alimentação, contudo, a carne conotada, numa leitura possível, remete ao aspecto sexual, ao desejo “carnal”, que contrasta com a ausência de interesse por parte de René.

René é filho de Ramón, que tem acentuado gosto pela carne, uma preferência tão apaixonada que é todo um sacerdócio e até uma dinastia, algo que se transmite de pai para filho.
( PIÑERA, 2003, p. 8)

Saindo de sua concentração passou um olhar pelo público. Os olhos de René tropeçaram nos da senhora Perez, que não havia tirado os seus de cima dele. Ela vivia em silencio apaixonada pela carne de René.
( idem, p. 9)

Conforme nos lembra Salvatore d’Onofrio em Poema e Narrativa: Estruturas, um sema se distingue de outro por relações de semelhança ou diferenças. Logo, na obra há uma constituição por aproximação significativa.

Enquanto sema contextual, que é variável, a “carne” tem seu significado alterado ou intensificado em relação ao enunciado, o que algumas vezes, deixa de ter seu sentido denotado e passa a ser metafórico. A metáfora, por sua vez, é construída pela relação sintagmática de dois significantes apresentados como semelhantes, pressupondo a existência de um texto e de um contexto que aponte a relação de (in)compatibilidade de um signo com o outro. Ainda com referência à metáfora, Roland Barthes ( LA Métaphore de l ‘oeil, em Essais critiques) a define como a mistura ou cadência de dois significantes, cujos termos não são mais associados segundo o uso tradicional. A figura anterior, por conseguinte, apresenta o eixo que “une” as ‘duas carnes".

Uma das vertentes plausíveis da metáfora é a metaforização por simbologia, classificada como dotada de uma imagem capaz de revelar um sentido oculto. (Onofrio, p.115).

_ Mina encantadora senhora- respondeu Ramón com ironia-, vejo que se interessa muito pelo destino de René. Não se preocupe, a carne de meu filho florescerá no devido tempo.
_ É encantador ouvi-lo dizer isso, senhor. Quando ouço a palavra florescer; a alma volta ao meu corpo. E se em alguma coisa eu puder ser útil para esse florescimento, estou à disposição de seu filho.
René ruborizou-se. Dália fez com que se ruborizasse. O sangue de Ramón subiu-lhe a cabeça. Devia pôr essa mulher para fora a pontapés?
Mas Dália não lhe deu tempo.
( PIÑERA, 2003, p. 23)

Analisando a vertente simbólica, é admissível compreender seu estado de significação como dúbio. As acepções que cercam tal palavra, de acordo com o Dicionário de Símbolos de Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, remetem ao aspecto humano, natural e animal. A vertente humana da metáfora carne, designa a natureza de todo e qualquer indivíduo, funcionando como uma espécie de antagonismo ao espírito, ao sublime e ao sagrado: o pecado é carne endurecida:

_ Está vendo este braço? Pois ele, sozinho, é capaz de comunicar tanto calor à sua carne que seria como se tivesse sido posta no forno.
Unindo a ação à palavra, deixou-o cair sobre o peito de René com a mesma suavidade com que uma serpente rasteja. A mão, semelhante à cabeça da serpente, começou a passar seus dedos pela superfície do peito.
( PIÑERA, 2003, p. 139)

Mas ela não ia permitir isso; afinal era a supermestra: o mequetrefe agora não escaparia. Apertou mais forte ainda com seus braços e pernas e, sem perda de tempo, meteu a língua na boca de René. O corpo dele estremeceu, curvou-se um pouco e finalmente endureceu. Dália sentiu as carnes de René endurecendo lentamente.
( PIÑERA, 2003, p. 141)


O referido “pecado”, presumido também pela figura da serpente é reforçado pela atmosfera erótica e sensual que envolve as personagens. Assim, a “carne endurecida” sugestiona uma “correspondência física” de René, ante a investida de Dália Perez, a “mestra” e iniciadora do jovem na vida sexual.
Retomando Chevalier, o homem encontra-se dilacerado entre a carne e o espírito, despedaçado pela dupla tendência que o anima, que pode ser conceituada como um jogo de oposição, centrado na aversão metafórica do prazer (o sofrimento), que permeia o romance em variados momentos.

Começou a amolecer? Excelente remédio, a língua...Mas poucas palavras e mais ação. Vamos continuar, agora, com este olho; olha para mim desafiante, e isso não é certo numa escola.( PIÑERA, 2003, p. 93)

Mas a carne que se estende sobre a mesa de tortura, essa carne para a qual o acaso de um acidente não importa (já que seu último fim é ser trucidada), numa palavra, essa carne pronta para o serviço da dor não é um insano desafio ao instinto de conservação? Não constitui um perigoso convite ao suicídio coletivo? Não é uma loucura que, para guardar um segredo, um homem ofereça a sua carne, e que para arrancá-lo, outro homem se resolva a sacrificá-la?
( Idem, p. 111)

A senhora Perez, denominada mestra do prazer, contrasta nitidamente com os professores da estranha escola em que René permanece desde que recebeu o “fardo’ familiar de continuar a revolução pela “santa causa do chocolate”. Amolecer a carne, por conseguinte, é uma possível alusão para o ato de ceder diante do sofrimento e da tortura. Já o ato de endurecer, no que tange à escola, pode propor uma rebeldia velada diante das normas institucionais.

É possível, assim, notar que a constituição metafórica está intrinsecamente ligada ao contexto. Todavia, o erotismo, mesmo em situações que não refletem a carne exatamente como sema do desejo, surge dissimulado em signos como a língua. Símbolo da chama, ela é descrita por Chevalier como capaz de destruir ou purificar. Do mesmo modo que na escola é usada para purificar a “rebeldia” da carne de René, que reluta em aceitar seu papel na revolução, num outro plano é a responsável pelo apelo carnal, pela destruição de sua inocência, como temos no exemplo a seguir:

Saltou alegremente e encolheu-se o peito de René. Sua grossa, longa língua- pastosa e vermelha- brotou feito uma chama. O relógio do corredor bateu sete vezes. Leitão começou a trabalhar a cara de René com a língua acariciadora. Escolheu uma zona, o pômulo direito, e iniciou o seu trabalho de escavação.
( PIÑERA, 2003, p. 93)
O líquido tinha caído em suas entranhas e as queimava, mas ao mesmo tempo seu cérebro se perdia numa bruma dourada e cálida. Agora, Dália, como se estivesse somando seus empenhos aos do conhaque, apertava suas ancas com as pernas, enroscando os braços em torno do seu pescoço, e grudava sua boca na dele. René quase gritou quando viu que Dália esticava a língua disposta a lambê-lo, ou pelo menos achou que ia fazer isso ao evocar a cena das línguas lambedoras da escola.
( idem, p. 141)

Algumas palavras dos trechos anteriores retomam a idéia de erotismo. O primeiro fragmento supostamente é uma tentativa de amaciar a carne para o “trabalho revolucionário”, ao passo que o segundo antecede a volúpia e a luxúria entre o jovem René e Dália Perez. Contudo, a justaposição de significações não remete necessariamente ao contraste, mas a um “amalgama” em que a carne de René é o fio condutor, a razão e a necessidade dos outros.
Analisando a obra num aspecto mais abrangente, a carne oferece uma gradação ao longo da trama, já que num primeiro momento o prisma oscila entre a carne do açougue ou o belo corpo de René, que despertam o mesmo desejo (inclusive com salivação); desdobrando-se na escola entre o desejo de liberdade e identidade, somados ao caminho da dor; ou o prazer e o não-prazer nos braços da Senhora Perez e, por fim, fecha-se o movimento cíclico metafórico na vertente do desejo ambíguo de carne, iniciado no açougue, como temos:


Retomando a teoria de Onofrio, é pertinente afirmar que a estrutura metafórica é passível de uma definição, pertinente ao eixo expressão-conteúdo, entretanto, o desenvolvimento narrativo retoma a metáfora como uma fusão de vários elementos que originam e encadeiam a constituição de uma linguagem figurada plural, com variadas expressões e conteúdos que se ampliam e complementam.
Um desdobramento peculiar ocorre quando René passa a ter consciência de que é feito de carne e, depois, quando recebe a visita do descarnado, como temos:
Um belo dia, René teve a comprovação definitiva de que era feito de carne. Foi preciso, para isso, um ano inteiro e a sucessão de diversas experiências que culminaram numa memorável tarde do mês de junho.
( PIÑERA, 2003, p. 221)

Só tratava com ossos puros; os cavadores os deixavam empilhados, e ele os transportava até o grande ossário. Assim, estava longe da carne, e que segurança era contemplar esses ossos sabendo que ninguém, na face da terra se interessaria por sua pessoa para comprometê-la na batalha pela carne.
(idem, p.221)

É necessário mencionar que René passa por um processo de amadurecimento. Todavia, ao saber que é carne, no sentido de ser humano, resolve buscar o oposto no trabalhando no cemitério, a fim de lidar com os “ossos” e a “não-carne”, e, em contraponto, negando a si mesmo, como a sentença grifada reflete. É no cemitério, também, que René vê seus duplo ser enterrado, o que provoca sua redenção.

Em nenhum momento passou pela cabeça que o morto fosse o seu duplo. Pensou num velhinho ou num senhor, mas nunca num jovem como ele. De todas as maneiras, tinha decidido ver a cara do morto (...) Levantou-a e dentro do ataúde repousava, usando o mesmo terno com que havia conhecido, seu duplo. Parecia que acabava de ser assassinado.
(PIÑERA, 2003, p. 221)

Outro elemento que complementa o amadurecimento de René é a visita daquele que não tem carne, uma espécie de ser que viveu o martírio antecipadamente (p.231). O descarnado, assim, funciona como um espelho disforme da realidade da personagem, que numa dicotomia latente parece condensar uma perspectiva de “paz” e “conflito”. Vejamos:

Se era certa a explicação do velhinho, se essa tese tão descabelada podia acabar sendo verídica, então ele também obteria o seu descarnamento...
(idem, p. 231)

Não, ele não tinha escapatória e muito menos a sorte desse louco descarnado, que tinha até a suprema vantagem de que nenhum poder humano lhe restituiria a carne perdida. Pelo contrário, a sua crescia mais e melhor a cada dia.
(Idem, p. 232)

A carne de René, provoca em Dália frenesi com profunda salvação e, no final do romance, pesado como uma porção de carne, notamos uma última metáfora, a carne próspera, voluptuosa, que não é mais desejo ou sofrimento, é a aceitação da condição humana, na qual a dor e o prazer chegam por vias opostas (p.139) e ao mesmo tempo, tentadoras.






Bibliografia:
• CRISTÓFANI Barreto, Teresa. A LIBÉLULA, A PITONISA - Revolução, homossexualismo e literatura em Virgilio Piñeira. São Paulo. Iluminuras. P.200.
• PESCUMA, Derna. Trabalho Acadêmico, O que é? Como fazer? Um guia para suas apresentações. São Paulo: Olho d’Água, 2003.
• PIÑERA, Virgílio. A Carne de René. São Paulo: ARX, 2003. p. 240.
• D’ONOFRIO, Salvatore. Poema e Narrativa: estruturas. São Paulo: Duas Cidades.