domingo, 27 de fevereiro de 2011

Porquinho-da-índia: uma análise preliminar

PORQUINHO-DA-ÍNDIA

Quando eu tinha seis anos
Ganhei um porquinho-da-índia.
Que dor de coração eu tinha
Porque o bichinho só queria estar debaixo do fogão!
Levava ele pra sala
Pra os lugares mais bonitos, mais limpinhos,
Ele não se importava:
Queria era estar debaixo do fogão.
Não fazia caso nenhum das minhas ternurinhas...
- O meu porquinho-da-índia foi a minha primeira namorada.

Porquinho-da-índia, poema de Manuel Bandeira, apresenta uma construção assimétrica que reflete o repertório de lembranças do eu poético, por meio de uma linguagem coloquial e emotiva, desdobrada entre o passado e o presente. Assim sendo, a leitura proposta tem por objetivo analisar os elementos intratextuais que justifiquem a abordagem mencionada, tendo por base a teoria proposta por Norma Goldistein em Versos, sons, ritmos.
Inicialmente, podem-se destacar duas palavras-chave: eu e porquinho-da-índia. A partir do “eu”, sujeito ímpar da construção lírica, o leitor é levado ao repertório de memórias de “uma criança de seis” anos que tem contato com seu primeiro objeto de afeto (porquinho). Vejamos:

Quando eu tinha seis anos
Ganhei um porquinho-da-índia.

A presença do “eu” é introduzida pela proposição do advérbio temporal (quando), que somado aos dois verbos no pretérito (tinha e ganhei) reforça a significação do passado. A idéia de posse (tinha) está no pretérito imperfeito, que denota uma ação interrompida, fato que de certa forma propõe que o objeto direto (porquinho) não existe mais no aspecto real, já o segundo verbo (ganhei) reflete uma ação completa e realizada, uma das poucas que integram PORQUINHO-AS-ÍNDIA.

Durante a leitura, os verbos no pretérito imperfeito predominam, sobretudo, no que corresponde às emoções.
Que dor de coração eu tinha
Porque o bichinho só queria estar debaixo do fogão!
Levava ele pra sala
Pra os lugares mais bonitos, mais limpinhos,
Ele não se importava:
Queria era estar debaixo do fogão.
Não fazia caso nenhum das minhas ternurinhas...






Apesar do jogo sonoro (aliteração dos fonemas s,n,m e assonância das vogais a, o), não é possível identificar regularidade na metrificação, o que Norma Goldstein classifica como “versos brancos” .
O ritmo é conferido consoante a leitura, e a repetição de palavras (porquinho e fogão, no segundo eixo poético, destinado à descrição do “objeto” referido nos dois versos iniciais).
Os versos, em sua composição estrutural, não obedecem a nenhuma regra de versificação, o que os classifica como “livres”, posto que há uma irregularidade que só obedece às pausas de pensamento do “eu”, divididas em apresentação do objeto e situação temporal (Quando eu tinha seis anos/Ganhei um porquinho-da-índia), retomada dos sentimentos por meio da memória (Que dor de coração eu tinha/Porque o bichinho só queria estar debaixo do fogão! ), descrição das ações do porquinho (Levava ele pra sala/Pra os lugares mais bonitos, mais limpinhos,
Ele não se importava:/Queria era estar debaixo do fogão), reflexão melancólica (Não fazia caso nenhum das minhas ternurinhas... ) e, por fim, situação presente que compara dois objetos (O meu porquinho-da-índia foi a minha primeira namorada).
A “inexistência” de rimas (versos brancos) na décima de Manuel Bandeira é reforçada pelo encadeamento poético, que é proposto de modo coloquial. A presença de palavras no diminutivo (ternurinhas, limpinhos, bichinho), por exemplo, enfatizam o universo infantil, delimitado na expressão numérica “seis anos”.
No campo semântico o caráter diminutivo aproxima o substantivo abstrato (ternurinhas) do substantivo concreto (porquinho-da-índia), construindo a imagem afetiva que ainda persiste na vida adulta. Ao comparar o porquinho com sua primeira namorada (consoante o uso do pretérito perfeito) há uma possível conexão entre os dois objetos de afeto, aproximados pelo “descaso” que possivelmente nutriam pelo sujeito. A preferência por ficar debaixo do fogão, todavia, pode ser de certo modo uma alusão metafórica a liberdade de escolha, já que apesar da insistência, o objeto amado tem uma vontade independente. Vontade análoga e, numa interpretação do universo feminino, extremamente singular.